Em 1997 o artista visual Kerry James Marshall vendeu sua obra "Past Times" por um preço de $25.000. Em maio de 2018, a mesma pintura foi revendida por um preço recorde de $21,1 milhões na Sotheby’s New York - sendo o maior preço de venda de um artista negro vivo. O momento foi comemorado como uma vitória da representatividade afro-americana, como um momento de progresso para o movimento Black Power. No entanto, para Marshall essa foi uma vitória totalmente abstrata, já que o valor monetário atribuído à revenda da obra foi direcionado apenas para o colecionador.
O que mais existe na indústria da arte visual são discrepâncias semelhantes às de Marshall: os artistas criam suas obras, vendem no mercado primário e quando há uma valorização da obra os colecionadores as revendem; e os artistas, criadores das obras, não ganham nada no mercado secundário. Essa prática padrão há muito tempo obriga os artistas a assistir os frutos de seu trabalho sendo distribuídos inteiramente para colecionadores, enquanto todo o seu esforço criativo é essencialmente desvalorizado.
Essa foi uma das grandes soluções que os mercados de NFTs trouxeram para os artistas digitais: o direito de royalties de revenda. Com o desenvolvimento desse novo modelo de negócio, praticamente todo o problema de distribuição assimétrica de lucros foi solucionado, proporcionando aos artistas digitais a possibilidade de gerar renda adicional com o sucesso contínuo de seu trabalho.
A maioria dos mercados NFT priorizou uma estrutura de incentivo voltada para seus criadores. O marketplace da OpenSea, que de longe era uma das plataformas que mais pagavam royalties aos criadores, exigia uma taxa de royalties de 2,5% até um limite de 10% no preço final de venda. Com mecanismos de alinhamento de incentivos como esse, as principais marcas NFTs, tanto de artistas individuais quanto coletivos, arrecadaram mais de 1,8 bilhão de royalties em vendas secundárias.
Foi uma inovação que fez até os artistas de telas migrarem para as artes digitais – que artista não sonha com um fluxo de caixa contínuo através de suas obras?
No entanto, a reação competitiva do mercado fez com que esse sonho durasse muito pouco. À medida que outros mercados surgiram com estruturas de incentivo priorizando principalmente a experiência do trader e do colecionador com o objetivo de ganhar volume, a dinâmica estabelecida de royalties para os criadores foi efetivamente abalada.
Grandes plataformas - como LooksRare, Magic Eden e X2Y2 - tentaram reter os compradores optando por deixar o pagamento de royalties totalmente opcional. A OpenSea até tentou honrar seu compromisso de royalties com os criadores, mas quando o Blur foi lançado com taxa zero e royalties opcionais para os traders, eles não tiveram alternativa a não ser entrar no jogo competitivo do mercado. Assim, aquilo que antes era considerado a principal proposta de valor dos NFTs foi rapidamente substituído por uma batalha pela capitalização de mercado.
Agora você deve estar pensando: ah, mas tudo bem, pelo menos as plataformas tornaram o pagamento de royalties opcional, então os colecionadores continuam pagando. Infelizmente, não é bem assim que as coisas funcionam.
De acordo com os dados do Galaxy Research, as transações de pagamento de royalties caíram em todos os principais mercados de NFT. A OpenSea e o Blur, que são líderes do mercado, testemunharam uma redução de 90% em suas transações de royalties.
O que ficou claro que se os royalties não são impostos por regulamentação, a grande maioria dos compradores preferirá não pagar. É uma triste realidade, mas nada diferente do que já estamos acostumados. Os consumidores sempre buscam o que satisfaz suas próprias necessidades e, consequentemente, os mercados também.
Aparentemente, existem poucas soluções para retornar royalties fixos aos NFTs. Os mercados não estão dispostos a abandonar a competição por volume para atender às necessidades dos criadores e, ao contrário do que muitos acreditam, os royalties não podem ser programados diretamente no token/contrato inteligente. Na verdade, existe uma função que permite incorporar um valor de royalties no token, no entanto, sempre que houver uma transferência desse token entre carteiras, serão cobradas taxas de royalties, ou seja, não é uma solução eficiente.
Por outro lado, os desenvolvedores estão fazendo vários experimentos para tentar ajudar os criadores a introduzir o valor dos royalties diretamente no contrato inteligente, mas ainda não encontraram uma solução. Existem até duas propostas de melhoria da Ethereum - EIP 2891 e EIP 4910 - que visam criar um padrão que permita programar um valor de royalties direto no contrato e sempre que o NFT for vendido ou revendido, os criadores recebem automaticamente as taxas em suas carteiras. Mas de acordo com a comunidade da Ethereum, esses são padrões muito complexos e ainda precisam ser aprovados.
Uma possível solução poderia ser um mercado que basicamente escolha a bifurcação dessa tendência de financeirização e, na outra ponta do espectro, criar um mercado mais focado em criações premium, onde os compradores estão mais predispostos a apoiar o criador e são menos sensíveis ao preço devido ao aspecto colecionável do que ele está comprando.
Mas infelizmente, enquanto não vemos nenhuma dessas soluções ativas, os artistas visuais precisam voltar à estaca zero onde o valor monetário atribuído à venda secundária de suas obras é direcionado apenas para colecionadores.