Poucas pessoas acreditam quando falo que antes de me formar em publicidade, estudei enfermagem por dois anos. Uma adolescente de 17 anos que escolheu a enfermagem como profissão no Brasil certamente buscava experiências profundas na vida — percebo isso hoje porque foram dois anos inesquecíveis, no sentido traumático da palavra.
Logo no primeiro período do curso, era obrigatório nas atividades extracurriculares oferecer serviços voluntários a crianças carentes. Foi a primeira vez na minha vida que vi de perto crianças tristes porque estavam com fome. Lembro-me de ter tido um choque emocional com toda aquela situação e entrei aos prantos, mal consegui prestar o serviço no primeiro dia (foi quando entendi que a vida poderia ser muito pior do que eu subentendia).
Durante os quatro períodos do curso, tive várias experiências pesadas relacionadas ao problema da saúde pública, mas a pior, e que me fez definitivamente desistir da enfermagem, foi o estágio no asilo público. Nesse asilo faltava tudo, desde alimentos até medicamentos e equipamentos — não vou nem entrar em detalhes das coisas que vi acontecendo lá senão vou te fazer chorar. Mas para mim foi tão revoltante conviver com aquela situação que optei jogar tudo para o alto e começar do zero outro curso.
No entanto, mesmo mudando o percurso, aquela revolta continua me acompanhando. Revolta porque se pensarmos na realidade atual do Brasil, só em 2022 foi gasto R$136,41 bilhões com as despesas da saúde pública, sendo R$1,1 bilhão desviados para o bolso de governantes inescrupulosos apenas no estado de São Paulo. Imagine somar isso com os desvios dos outros 26 estados — não encontrei essa informação, mas certamente será um número trágico.
Então eu me pergunto: quanto deve ter sido desviado daquele asilo para a instituição estar naquele estado deplorável?
O crime no Brasil é tão organizado que por mais que a Polícia Federal, em suas diversas operações para apurar fraudes e desvios desses recursos da saúde, tenha prendido alguns delinquentes, sua multiformidade torna difícil solucionar (ou muitas vezes não se interessam em solucionar, é mais fácil deixar como está).
Apesar das informações sobre o funcionamento dos esquemas não serem divulgadas de forma precisa e transparente, o padrão é claro: fraudes de licitações gerando superfaturamento de contratos na compra de medicamentos ou serviços contratados e desvio dos recursos públicos.
Ou seja, um problema na estrutura operacional.
Algo que pode ser simplesmente solucionado com o uso da tecnologia blockchain. Como o IBM explica:
Blockchain, como um livro-razão distribuído, poderia ser usado para criar um sistema de gerenciamento de ativos, contratos e conformidade regulatória, oferecendo uma abordagem mais transparente para as operações de um governo. Além disso, seu recurso de rastreabilidade permitiria que as transações fossem verificadas quase em tempo real, ajudando as investigações a evitar comportamentos fraudulentos.
E isso não é uma utopia!
Hoje vários países ao redor do mundo estão implementando tecnologia em suas estruturas organizacionais, tanto no setor público quanto no privado. A Suíça é um dos países líderes no uso do blockchain, com vários projetos em andamento em áreas como finanças, saúde e logística. A China também implementou a tecnologia em vários setores e registrou mais patentes na tecnologia do que qualquer outro país em 2019.
Enquanto isso o governo brasileiro passa longe desse tipo de implementação.
Na verdade, foram apresentadas propostas de implementação blockchain para sistemas de transferência de dinheiro, gerenciamento de identidade e emissão de moeda digital, com o objetivo de criar a ilusão de que estão de mãos dadas com a inovação. Mas nunca foi mencionada a aplicação em sistemas de gerenciamento e controle financeiro para controlar o fluxo de recursos públicos, gerenciar orçamentos e monitorar a execução de despesas.
A cultura do roubo está tão enraizada no nosso país que pensar no Brasil migrando sua estrutura organizacional para o blockchain é o que parece uma utopia.
Claro que uma migração como esta é complexa e requer um planejamento cuidadoso e uma estratégia bem definida, como foi justificado pelo governo brasileiro. Mas se pensarem bem, só com esse dinheiro desviado da saúde seria suficiente para criar um polo industrial blockchain.
Vendo por outro lado, pelo menos eles conseguem manter um equilíbrio perfeito entre iludir a população com a ideia de inovação e roubá-la.
Eu sei que não é piada, mas pensar nisso até me lembrou uma música engraçada do nosso querido Martinho da Vila: “canta canta, minha gente, deixa a tristeza pra lá, canta forte, canta alto que a vida vai melhorar”.
A vida vai melhorar com o novo Real Digital que não resolve nenhum problema real.