Algumas semanas atrás, um amigo me questionou sobre minha opinião a respeito dos Ordinals na blockchain do Bitcoin, e minha resposta foi franca: "Olha, não tenho opinião formada sobre o assunto, uma vez que meu conhecimento é superficial. No entanto, considerando essa perspectiva superficial, me parece um tanto desnecessário sobrecarregar a blockchain do Bitcoin com esses NFTs, uma vez que já existem plataformas especializadas para essa finalidade."
Ele expressou sua opinião contrária, considerando a natureza sem permissão da rede Bitcoin, onde as pessoas têm total liberdade para criar transações financeiras ou não financeiras da maneira que desejarem. Ao ouvir essa perspectiva, concordei com ele, enquanto também decidi aprofundar meu conhecimento sobre os Ordinals que, diga-se de passagem, é uma inovação que está transformando não só as possibilidades de uso da rede Bitcoin, mas também a cultura de toda sua comunidade.
Portanto, este artigo é o resultado de uma pesquisa histórica sobre os Ordinals e as diferentes perspectivas existentes na comunidade.
Blockchain Bitcoin: Transações financeiras x Transações Arbitrárias
Na comunidade Bitcoin, sempre houve um debate constante em torno do propósito das transações realizadas na rede: o Bitcoin deve ser (1) predominantemente utilizado para registrar transações financeiras ou (2) ser um meio de armazenamento distribuído e seguro para qualquer tipo de dados?
Embora boa parte da comunidade fosse favorável à opção 1, é interessante notar que, com o avanço das atualizações do protocolo, a rede tem se aproximado cada vez mais do argumento da opção 2.
Um marco importante nessa direção ocorreu em 2014, quando o Bitcoin Core introduziu a função OP_RETURN, um recurso que permitia a inclusão de dados não monetários na rede, com capacidade de até 80 bytes. Embora fosse possível adicionar dados arbitrários às transações antes da introdução dessa função, os dados armazenados permaneciam permanentemente na rede, resultando em um acúmulo indesejado de informações. Foi nesse contexto que o Bitcoin Core buscou criar um esquema eficiente de remoção, permitindo que os dados arbitrários fossem facilmente eliminados por meio de uma saída específica. O objetivo principal era evitar a sobrecarga do banco de dados do Bitcoin com transações consideradas inúteis, ao mesmo tempo em que permitia a inclusão de informações relevantes na rede.
No entanto, não foi exatamente isso que aconteceu. Na realidade, essa atualização abriu portas para projetos e iniciativas experimentarem as possibilidades da função.
Omni e Counterparty são exemplos de projetos que inicialmente utilizaram a função OP_RETURN no Bitcoin, sendo a Omni a base da stablecoin Tether original e a Counterparty o protocolo usado para os Rare Pepes. No entanto, devido à limitação de espaço de 80 bytes no OP_RETURN, ambos os projetos migraram para a plataforma Ethereum em busca de maior capacidade de armazenamento e flexibilidade para informações mais complexas.
Mesmo o Bitcoin Core não ficando nada satisfeito com as iniciativas, essa experiência evidenciou a necessidade de uma solução mais eficiente e escalável para as transações na rede Bitcoin.
Para abordar essa questão, em 2017 foi lançada a atualização chamada Segregated Witness (SegWit), que trouxe melhorias no tamanho dos blocos e na capacidade de processamento das transações. Posteriormente, em 2021, foi lançada a atualização Taproot, que proporcionou melhorias significativas nas funcionalidades e eficiência das transações, incluindo a possibilidade de armazenar dados arbitrários de até 4MB em uma transação no Bitcoin — e essa foi a atualização que impulsionou a criação do protocolo NFT Ordinals.
Ordinals Inscriptions
Basicamente, os Ordinals são uma forma de rastrear individualmente as menores unidades de um bitcoin, chamadas satoshis, e reutilizá-las como NFTs (tokens não fungíveis). Isso significa que cada satoshi pode ser identificado e representado como um item único.
Uma coisa importante é que a escolha dos nomes "Ordinals" e "Inscriptions" se baseia em sua função específica: enquanto o termo Ordinals representa a regra algorítmica que permite o rastreamento individual de satoshis como NFTs, os Inscriptions se referem as informações adicionais gravadas nas transações do Bitcoin — que pode ser desde de textos, fotos, áudios e vídeos, desde que seu tamanho total não exceda 4MB.
De acordo com o criador do protocolo, Casey Rodarmor, as Inscriptions são caracterizadas como “artefatos digitais” que se distinguem dos NFTs presentes em outras blockchains. A diferença fundamental reside no fato de que os NFTs utilizam um sistema de armazenamento de arquivos que permite a adulteração usando metadados dinâmicos — que é usado, por exemplo, para aprimorar a qualidade das imagens. Por outro lado, os Ordinals são artefatos digitais porque, de fato, armazenam os dados brutos do arquivo diretamente na blockchain do Bitcoin, conferindo a elas uma característica única.
Não é novidade para ninguém o que a ideia de inscrever esses artefatos digitais fez com a blockchain do Bitcoin. Desde seu lançamento, a adoção e a utilização do Taproot aumentou para recordes históricos, com um aumento substancial no volume de transações, congestionamento em mempools e aumento no tamanho médio dos blocos.
Além disso, graças a facilidade que o Ordinals trouxe na implementação de dados arbitrários, também foi lançado o token BRC-20, um padrão de token experimental que permite que tokens fungíveis sejam cunhados e negociados por meio do protocolo Ordinals. Atualmente existem cerca de 34.838 tokens BRC-20 em circulação, com uma capitalização de mercado que ultrapassa os 272 milhões de dólares. Então, basicamente, agora tem o protocolo metatoken dentro do espaço de dados arbitrários do Bitcoin, proporcionando uma nova dimensão de funcionalidade e possibilidade dentro da rede.
Toda essa empolgação obviamente trouxe controvérsias e mudanças estruturais no comportamento da comunidade. Por um lado, os opositores expressam preocupações sobre as implicações de longo prazo para o funcionamento da blockchain do Bitcoin, pois além do aumento da atividade na rede causar problemas de experiência do usuário, a facilidade de incorporar dados arbitrários no bitcoin abre espaço para a proliferação de esquemas fraudulentos e manipulação de mercado.
Além disso, já existem pessoas trabalhando em extensões para o BRC-20, o que significa que logo as pessoas vão começar a negociá-los em criadores de mercado automatizados, vão criar plataformas de renda passiva, usando-os da mesma forma que as pessoas usam qualquer token em DeFi.
Por outro lado, os defensores dos Ordinals argumentam que sua implementação é benéfica para a rede Bitcoin, pois contribui para sua sustentabilidade econômica. Essa visão é baseada no fato de que o Bitcoin é respaldado por taxas de mineração, que diminuem progressivamente a cada quatro anos à medida que as recompensas por bloco diminuem. Quando essas recompensas se aproximarem de zero (o que está previsto para ocorrer em 2140), os mineradores receberão apenas receita de taxas de transação, que são essenciais para a segurança e confiabilidade do blockchain. Se essas taxas forem insuficientes ou muito voláteis, o nível de segurança da rede pode ser comprometido. E isso é extremamente preocupante, pois os usuários do Bitcoin poderiam estar suscetíveis a ataques de gasto duplo ou diminuição da taxa de hash da rede. Portanto, surge a ideia de que uma possível solução para esse problema seja a adoção da emissão contínua de taxas.
Eu particularmente acredito que as duas perspectivas fazem sentido. No entanto, mesmo com a oposição existente, acho que os casos de uso do protocolo Ordinals estão apenas começando. Principalmente porque os desenvolvedores pro-Ordinals têm se dedicado continuamente a superar desafios relacionados a taxas e espaço em blocos, e recentemente introduziram o Recursive Inscriptions, um recurso que permite incluir Inscriptions maiores que o limite de 4 MB em um bloco. Com essa nova capacidade, podem surgir funcionalidades adicionais que vão além do limite tradicional de 4MB do bloco Bitcoin, como a possibilidade de incluir até videogames 3D complexos. Ou seja, não adianta criticar ou reclamar, porque aparentemente os Ordinals não vão parar.
Então minha conclusão é que, dado o contínuo desenvolvimento do protocolo Ordinals, o essencial é que a comunidade se envolva em estudos aprofundados para compreender completamente os impactos e riscos envolvidos e tente buscar um equilíbrio entre inovação, segurança e sustentabilidade para o Bitcoin. Pois somente por meio de uma comunicação efetiva entre todos os participantes, por meio de pesquisas e estudos aprofundados, o Bitcoin conseguirá manter seu futuro sustentável.