Não tão descentralizados
A capacidade de atualização dos contratos inteligentes é realmente o problema?
Descentralização pode ser simplesmente definida como a distribuição de autoridade a todos os níveis hierárquicos em uma organização. Em tal estrutura, o processo de tomada de decisão relacionado à gestão da organização é de responsabilidade de todos os participantes, eliminando um único ponto central de controle, pois nenhuma alteração pode ser feita no sistema sem o consentimento de todos.
Indiscutivelmente, o blockchain é uma tecnologia que facilitou essa distribuição de autoridade a partir de seu mecanismo de consenso. No entanto, não é só porque um projeto foi construído no blockchain que significa que ele seja totalmente descentralizado. Diferentes tipos de projetos têm diferentes abordagens para obter isso.
A descentralização de blockchains usando o mecanismo de consenso de prova de trabalho depende em grande parte de quão alta é sua taxa de hash e por quantos mineradores a taxa de hash está distribuída. No Bitcoin, por exemplo, apenas quatro provedores de serviços de mineração controlam 76,5% da taxa de hash da rede. Das quatro principais pools de mineração, a Foundry USA assume a liderança com 28,8% de toda participação de hash.
Por outro lado, em blockchains que usam consenso prova de participação, a descentralização depende da quantidade de validadores na rede, da quantidade de tokens depositados e da distribuição dos tokens entre esses validadores. Na Ethereum, o Lido Finance detém uma participação de 31% dos tokens depositados, enquanto 22% são depósitos de outras entidades diferentes.
Embora essas blockchains ainda sejam consideradas centralizadas por grandes entidades, elas são muito mais descentralizadas do que os sistemas centralizados tradicionais.
Existe uma forma de medir o nível de descentralização das blockchains através de três métricas de medição (coeficiente de Gini, coeficiente de Shannon e coeficiente de Nakamoto), mas deixo para entrar em detalhes sobre isso em uma outra newsletter.
Hoje o que quero explicar aqui é que além das blockchains terem diferentes formas e níveis de descentralização, os contratos inteligentes, que têm como uma de suas principais promessas a imutabilidade de seu código, podem ser alterados.
Na realidade, os contratos inteligentes são realmente imutáveis por design, o que impede qualquer atualização na lógica do código depois que o contrato é implantado em uma blockchain. No entanto, como essa imutabilidade geralmente é uma desvantagem, já que o código imutável impede que os desenvolvedores corrijam contratos com vulnerabilidades de segurança, os pesquisadores encontraram uma maneira de “melhorar” a operação dos contratos.
Mas como fazem isso?
Basicamente, eles entenderam que é possível ter um ou mais contratos operando a mesma lógica de negócios simultaneamente. Isso significa que, quando um contrato inteligente deve ser modificado, eles simplesmente implantam outro com a mesma lógica e modificações e os substituem entre eles. A partir daí, os novos contratos são utilizados e os antigos são abandonados na rede por serem imutáveis. E o melhor de tudo, ou pior, depende do seu ponto de vista, é que todo processo de troca é feito de forma que o usuário final não percebe.
Agora começa as discussões.
Como existem vários desenvolvedores trabalhando em ideias com visões diferentes uma das outras, há um intenso debate sobre se isso é positivo ou negativo para as plataformas.
Há quem não aprove a ideia, alegando que a complexidade da atualização cria uma nova fonte de possíveis bugs. Assim como aqueles que argumentam que a atualização ajuda a criar um ambiente mais seguro, permitindo que bugs sejam corrigidos e exploits evitados ou contidos.
Em alguns casos, as diferenças de opinião estão relacionadas a questões de evidências empíricas, em outros casos, relacionadas a questões de crenças pessoais.
Do meu ponto de vista — obviamente baseado na minha crença pessoal — não acho que a atualização dos contratos inteligentes seja o verdadeiro problema, até porque o ecossistema ainda está em fase de experimentação e enquanto isso sempre haverá descobertas, melhorias e modificações para serem feitas.
No entanto, a falta de comunicação sobre como os protocolos realmente operam e a confiança intrínseca nos desenvolvedores dos projetos é o que acho que pode resultar em consequências negativas.
A imutabilidade do contrato inteligente está totalmente relacionada à confiança e ao nível de descentralização de um projeto. Se os usuários, desconhecendo a natureza atualizável de um contrato inteligente, confiam plenamente que os desenvolvedores não podem implementar alterações arbitrárias — o que os incentiva a interagir livremente com os aplicativos descentralizados — e de repente algum projeto faz uma atualização que tem um efeito negativo na plataforma, já era. Eles nem tiveram a chance de escolher entre permanecer no DApp ou cair fora.
Para mim esse é o grande problema, a falta de transparência em como os protocolos estão realmente operando e a ideia de descentralização que é vendida em excesso.
Exatamente por isso que nós, como usuários dessas novas tecnologias, devemos fazer nossa parte de pesquisar e entender como elas funcionam antes de usá-las. Mesmo que possam existir protocolos que não comuniquem suas atualizações nos contratos inteligentes, se tivermos um entendimento mais abrangente sobre a tecnologia, entendemos que o objetivo de qualquer aplicação na blockchain é fornecer aos usuários a solução que eles precisam, e isso pode ou não incluir certos níveis de centralização.
Não estamos em um mar de rosas livres da centralização de organizações poderosas e nunca mais seremos enganados.
Estamos em um período de transformações relevantes para a sociedade, no qual agora temos produtos financeiros que permitem a entrada de qualquer pessoa para negociar ativos arriscados na internet, novos sistemas de governança que compartilham o poder com uma inclusão sem precedentes, transações peer-to-peer que permitem pagamentos transfronteiriços (quem faz pagamentos internacionais sabe como hoje é mais fácil e barato pagar qualquer pessoa no mundo inteiro com stablecoin ou qualquer outra cripto) e novos modelos de negócios que apoiam a criação e o compartilhamento de obras dos artistas que antes eram praticamente invisíveis.
Mas independente da centralização, descentralização e melhorias, o importante é estarmos atentos a todos os riscos e continuarmos evoluindo.